20100627

O desejo foi e voltou desejando.

20100626

E aí vem alguém e me pergunta: – Como anda o coração?

Oras, como eu poderia saber como ele anda se não sei nem por onde?

– Não sei, mas caso o encontres, diga que estou ocupada.
– Isso tem a ver com aquela briga antiga de vocês?
– Acho que sim, não nos damos muito bem desde então, ele não me compreende e eu não o compreendo. Aliás, não sei por que insisto nessa convivência há tanto tempo.
– Amor pelo amor.
– Eu não amo mais, muito menos o amor.
– Duvido.
– Duvidaria também se conseguisse. Eu sinto outras coisas e isso nada tem a ver com o coração. A questão é que ele desaparece e sem ele eu desisto.
– Desiste do quê?
– Oras, do que estamos falando!
– Eu esqueci, me desculpe. Mas por que não persistes na procura e te preenches com ela?
– Me parece meio patético...
– A partir do momento que conseguires de fato te comunicar com ele, saberás por onde ele anda, por que e como. E, numa dessas, consegues até mesmo amá-lo, assim como ele te ama.
– Ele me ama? Pois achei que me odiasse pela maneira de como me trata.
– Vou ser sincero, encontrei-o perto da praça da sorveteria choramingando por não conseguir conviver contigo.
– Jura?
– Mentira, ele só estava tomando sorvete.
– Mas não era sorvete com cor estranha, era?
– Ah, tinha uma cor meio misturada de goiaba com banana com umas mesclas cor-de-kiwi...
– Não disse, esse coração é louco! E depois eu que tenho que cuidar dos problemas que ele arranja. Aposto como vai voltar todo lambuzado querendo me enfiar essas cores estranhas goela abaixo!
– Dá uma chance pra ele, coitado, ele bem que se esforça. Melhor do que ficar aí toda gelada.
– Pelo menos sou gelada e transparente.

[Pequena apatia do diálogo.]

– E ele não se esforça coisa nenhuma, da última vez me trouxe uma abóborada que só vendo, a anterior foi um grande pepino e por aí vai.

[Eu não podia comentar que existiam as exceções das duas primeiras vezes, nas quais ele ainda tinha alguma noção e a gente dialogava numa boa, pois senão ia acabar dando uma brecha pra algum comentário deslizante.]

– Não vejo problemas em abóboras e pepinos.
– A verdade é que gosto bastante de pepino e até de abóbora, mas sabe quando não é isso que satisfaz o desejo? Então.
– Como assim?
– Suspeito desejar o que não existe ou o que vive do outro lado do mundo, algo assim, o que daria na mesma, de incerta forma...
– Você é louca, seu coração lá tomando um baita sorvete colorido na praça e você aqui querendo o outro lado do mundo!
– Sorvete colorido não me seduz, não adianta insistir.

Como eu desconfiava, bastou uma pausa pro coração chegar do passeio todo lambuzado, andar pela casa sujando tudo e depois se deitar na cama, contaminando a minha coberta preferida com aquele sorvete de cor estranha. E ainda teve a ousadia de me perguntar:

– Fez faxina na casa?

20100625

estrela, anel de brita, memória de cereja

Acendia a primeira estrela que era pra poder pensar durante a noite. O cinzeiro era um anel feito de brita, pedra de um brilho particular, e a fumaça eram memórias translúcidas cor-de-cereja. Acendia, então, a segunda estrela, mas já era quase de manhã. As memórias já estavam escassas, só nas sementes, e o brilho da brita transbordava um grito tão fosco que parecia ter passado por cinco dias seguidos. Talvez tivesse e, no lugar da segunda estrela, eu acendia a vigésima ou a trigésima. Enchia e esvaziava a brita de cor-de-cereja. Transbordava fosco e cansativo. Mas acender uma estrela após a outra ainda me fascinava de maneira que eu não conseguia poupar nem britas nem cerejas. Eu devia olhar para os lados e perceber que os dias passavam mais depressa quando eu estava entretida com as memórias. Mas não, a única coisa que preenchia meu pensamento era o fato de estar entre uma estrela e outra e, enquanto as estrelas eram consumidas, eu ia esquecendo da última estrela, ia jogando sua cor-de-cereja no caminho até acender a próxima e jogar novamente sua cor no caminho. O caminho era um amontoado de estrelas sucumbidas em memórias roídas até as sementes. E duplamente roídas por quem passasse e fosse seduzido como eu fui um dia. A verdade é que ando atrás de algumas memórias que ainda não chegaram na semente, porque desconfio que o mundo é esse anel de brita transbordado de fosco, cansativo.
Nunca consegui me dar muito bem comigo,
mas acho que não passa de um exagero antigo,
pois sempre houve coisa boa qualquer
como atacar brigadeiro de colher.
Mesmo que desse espinha até no umbigo.

20100624

preciso de chá de dessumiço

hoje acordei pra não me encontrar, já recortei vinil e já comi até parar, mas qualquer coisa que me vem na cabeça é sobre nada, é sobre mar, e o relatório do trabalho que espere, pois que posso fazer se tomei chá de sumiço de mim mesma e não dessumo do serviço?

20100622

quase-quase-fala

Estou muito quase-falante hoje, mais que cito, mais que limericko, mais que converso, mais que outra coisa.

Stolf é bagunça, bem que fui avisada no batizado, fui batavisada.

A minha cabeça é uma bagunça de comida com trabalho, medo de barata, de assalto, frio e chuva, vento em popa, sopro em sopa, bagunça atleta que não para quieta, é como sabão em pó comprimido em canudos listrados lado-a-lado em cima da almofada, reclamação de sonho infiltrado em lata de milho em conserva, bagunça conservadora de pó e de não-podes, e de poderias quem sabe noutra via da bagunça, esperta que só ela entende o rizoma do dia, todo em fatia, bolo de cabelo amassado formando o tal do fora, o tal múltiplo pensamento, as tais rupturas o tempo inteiro ligadas a outras rupturas, esse monte de devir da vida, de levar as coisas pra lá e pra cá como se lugar não houvesse pra parar de soluçar.

parlava a palavra palarva

Não meço palavras e não digo coisa exata,
pois a escritura nem sempre é sensata.
Palavra é maleável como lesma,
não sendo sempre a mesma,
palavra é um misto, dá em escrita vira-lata.

20100620

As coisas podem ser o que a palavra permitir
e a palavra pode ser o que as coisas permitirem.

desejo e nonsense

Precisa-se de um vestido para uma festa, pois o guarda-roupa está vazio de vestidos para a específica festa. Portanto, caminha-se até uma loja de sapatos e compra-se o mais bonito deles. Resolvido o problema: o guarda-roupa não está mais ausente de vestidos, uma vez que eles subsistem o sapato que foi comprado.

o céu é uma caramboleira

carambolas são estrelas tridimensionais

20100619

um incomodo seria estar no fora?

enxergo aí um paradoxo.

chuva, chave e wc

Num lapso de tranquilidade por distração do trabalho (coisa periódica frequente) acreditei piamente que a chuva fosse uma goteira inquieta no banheiro. Lógico que a coisa (a distração com o trabalho ou a chuva-goteira) começou a se tornar mais intensa, foi que desconfiei que eu não poderia tomar banho de chuva nesse frio, já que a chuva não é elétrica como o chuveiro. (Se o chuveiro chove chuva, o chaveiro chove chave? Por isso um molho de chaves!) Se chovessem raios, pelo menos (voltando ao chuveiro). Engraçado que o chuveiro é elétrico, é colecionador de pequenos raios, mas não parte a gente numa trovoada particular. E quando chove a chuva, coisa esquisita, chove em todo o lugar. O mundo não tem outro cômodo que não o banheiro?

o livro

é livre

20100616

saltar no abismo da própria cabeça

Abismada, corrompida, dissimulada, mal-vestida, louca de pedra, de palavra, ausente de sono, de saída, sacudida que melhora a vida, um dia depois, um dia antes, a noite, a lasca de lua que parece unha, que parece lenta na rua, na cabeça da gente, no sonho perdido na fronha, no edredom, na vontade de pular, de correr, de saltar e morrer enquanto sonha.

20100615

(sons de um sono sonso, não nosso)

sonosonosonosnsonsosnosnsonsosnosnosnosnsonsosnosnsonsosnosnosnsonsosnosnsonsossonosonosonosnsonsosnosnsonsosnosnosnosnsonsosnosnsonsosnosnosnsonsosnosnsonsossonosonosonosnsonsosnosnsonsosnosnosnosnsonsosnosnsonsosnosnosnsonsosnosnsonsos

vale deixar claro:

Quando eu comecei a escrever os "limericks" a minha única preocupação estava no nonsense (nem sempre alcançado) e nas próprias rimas, mas soube há um tempo por aí (não lembro onde) que um poema nonsense tem outra regra, a de que a terceira e a quarta linha devem ser menores que as demais, que variam entre 7 e 12 sílabas. Portanto, eu não escrevia/escrevo limericks, mas sim quase-limericks!

20100613

Situações possíveis de escorrer, de não-escorrer, de sentir e de não-sentir:

1 estar escorrendo e sentir-se escorrendo, como chorar bonito ou chorar alto
2 estar escorrendo e não sentir-se escorrendo, como num esconderijo subconsciente de si mesma
3 não estar escorrendo mas sentir-se escorrendo, numa ânsia/invenção/proposição de sentir
4 não estar escorrendo nem sentir-se escorrendo, como as máquinas que esbarramos pelos shoppings, pelas imobiliárias ou pelas universidades (nem preciso citar os políticos ou os matadores de foca)

(escrito há um ano e dois dias em resposta à Tati Plens. estou num momento de relembranças, na situação terceira)

20100606

Está escuro.

Estou sentada sobre uma pedra e sob o sereno.

20100605

esgotar

Acordei pra não saber, dormi pra não saber. E, numa regressão de fatos, há dois anos estou não sabendo todos os dias. Eu sei que há anos eu já esgotei o que não deve ser passageiro, por isso hoje tudo é paisagem. As paisagens são destruídas o tempo inteiro e se transformam e se deformam e nada. O que não deve ser passageiro me faz alguma falta passageira. Pelo motivo de não ter passado ainda, mesmo depois de tanta paisagem sobre paisagem. Permaneço mal humorada, mas queria apenas permanecer quieta. Tenho que me permitir na prática, minha amiga sublinhou há algumas horas. Me permitir? Estou enjoada, quero vomitar. Era mentira. A verdade é que isso tudo é muito estranho. Frequentemente acontece algo que me tira da minha vida e, então, lá vou tentar me achar no meio da confusão. Quando eu afirmo meu mau-humor, ele mais tem a ver com algum tipo de preguiça, que não se refere a uma preguiça física, evidentemente. É um enjôo das coisas, como eu disse antes (a mentira era outra coisa). Será que é mesmo por aqui que as coisas vão ficar? Repetidas vezes a mesma situação. As pessoas são loucas mesmo. Se eu fosse uma minhoca seria natural me permitir ser transformada e deformada junto das paisagens, e destruída também. Mas sinto que eu já esgotei as goteiras do desgosto.

exercício de despensamento

clarear até à cegueira ou criar uma preocupação fictícia que sobrepõe o resto todo

Nem adianta tentar.

Deixar-te. Eu tenho medo do ótimo. Trovão sob trovão. As coisas trocam de lugar. Umas com as outras. Gosto de cigarro. Apagado. Eu queria pensar tão baixo que nem eu. Conseguisse ouvir, esquecer. Não há. Como dormir pra dentro do outro. Pensamento. Escapar do que eu acho.

Não vou achar. Nem perder.
desobedeço-me constantemente

20100604

vida adentro vida afora

frustrante é dormir e sonhar a noite inteira com o dia seguinte em tempo que parece real e depois ter que acordar e viver um déjà vu de 24horas. também é acordar achando que está indo dormir. esses dias aconteceu de eu estar num sonho, na maior realidade do mundo, e viver uma garota que participava de uma peça de teatro na qual deveria expressar-se em francês. o porém é que ela estava muito frustrada com a sua memória de peixe que, justamente por viver uma vida acordada e outra dormindo, a fez esquecer de todos ensaios da peça (das falas e gestos). por isso ela estragou com o grande evento final do sonho e acordou depois de desejar boa sorte aos colegas de trabalho que viajariam dali alguns minutos até uma ilha distante. o que ela não sabia é que eles estavam fugindo das loucuras dela. e o que eles não sabiam é que ela não via a hora de acordar para a vida seguinte, onde ela tomaria tanto café que não conseguiria mais fechar os olhos e olhar pra dentro de si mesma.

humor de ônibus que para em todas as rodoviárias do caminho

deu tudo certo por lá na medida em que a chuva permitia: costurei um caderno e ganhei um livro, ambos lindíssimos. minhas pernas estão mais inquietas do que nunca e no ônibus minhas mãos ficaram dormentes muitas vezes seguidas. vou terminar de ver delicatessen (ele ficou aberto na minha cabeça por esses dois dias) e dormir.